Drummond e o "Diário Reinventado"

Drummond e o "Diário Reinventado"
Essa foto registra homenagem deliciosa e delicada do prof. Luis Carlos Maciel ao meu pai, Eduardo Cisalpino. O livro que o prof. segura nas mãos e que parece "comentar" com o poeta, é o "Diário Reinventado, de Eduardo Cisalpino.. Obrigado à Magda pela foto.

Jack Kerouac

Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam, como fabulosas velas amarelas romanas explodindo como aranhas através das estrelas

domingo, 18 de setembro de 2016

O GENERAL, O REITOR e o III ENE

Seguia o ano de 1977. 
Ano agitado. O general Geisel havia anunciado a "Abertura Política" que, segundo ele, seria "lenta, gradual e segura". A oposição crescera a ponto de ameaçar a "Abertura Segura", conforme planejada pelo governo e vieram, entre 76 e 77, a Lei Falcão e o Pacote de Abril. É importante lembrar que a proposta de "Abertura" não foi unanimidade dentro do governo e entre os militares. O General Sylvio Frota, ministro do exército, se opunham frontalmente ao projeto de Geisel, e o presidente teve enfrentar também esta oposição, uma oposição interna, que levaria a uma situação perigosa, em outubro de 1977: a demissão do ministro. O general Geisel tomou o cuidado de contactar todos os oficiais generais do exército brasileiro antes de demitir o ministro, para evitar qualquer tipo de insubordinação. Nos anos seguintes, essa insatisfação de alguns setores ligados à sociedade civil e aos militares com a "Abertura" levaria, por exemplo, na tentativa de atentado a bomba no Rio-Centro
Diversos setores da sociedade civil se mobilizavam no sentido de reorganizarem suas entidades representativas, inclusive, é claro, o movimento estudantil. Desde 1976, os estudantes brasileiros promoviam encontros que tinham como objetivo recompor a UNE. Em 1976, a tentativa de recriar a direção da entidade terminou em enfrentamento com a polícia paulista, a invasão da PUC-SP, vários estudantes feridos e presos.
Mas a mobilização continuou e nova tentativa foi marcada para Belo Horizonte, em Junho de 1977. Os líderes estudantis da UFMG procuraram o reitor para saber da possibilidade de realizarem o encontro e a eleição da nova direção da entidade.
Considerando a proposta de "Abertura" e principalmente a autonomia universitária, o reitor garantiu a realização do encontro, nas dependências da UFMG, cujo centro seria o DA (Diretório Acadêmico) da Escola de Medicina da UFMG, na avenida Alfredo Balena, em Belo Horizonte.
A reitoria também solicitou urnas eleitorais ao TRE-MG que seriam disponibilizadas para que os estudantes realizassem a eleição.
Mas, a Polícia Federal, comandada pelo General Antônio Bandeira, naquele momento, não pretendia colaborar da mesma maneira. A Polícia Federal constatava que caravanas de estudantes começam a se mobilizar em diversos estados, em direção a Belo Horizonte, de ônibus. O general Bandeira entrou em contato com o coronel Ney Braga, que era ministro da educação no governo Geisel, para que este intercedesse junto ao reitor da UFMG, para que o encontro não acontecesse.
O ministro, entretanto, disse ao reitor que a decisão era dele, mas também avisou que a situação era crítica e que o general Bandeira não pretendia recuar.
Em junho de 1977, a situação era tensa em Belo Horizonte. estudantes se mobilizavam por toda a cidade para o encontro e a polícia federal, juntamente com a PMMG, procuravam evitar o mesmo.
As vias de acesso a Belo Horizonte foram reforçadas e todos os ônibus eram parados. Aqueles que traziam estudantes, de diversos estados brasileiros, eram parados e obrigados a retornar a suas cidades de origem.
Passeatas e aglomerações estudantis eram reprimidas por toda a cidade, incluindo a invasão e prisão de estudantes na Igreja São José, no centro de Belo Horizonte.
Cerca de 400 estudantes conseguiram chegar e se abrigaram dentro do DA da Medicina, na Alfredo Balena.
A confusão estava formada. O governador do estado e o general Bandeira ligavam para o reitor da UFMG e ameaçavam invadir a universidade e prender os estudantes. O general chegou a ligar para a residência do reitor e fez a ele diversas ameaças, inclusive de caráter pessoal. O reitor disse ao general que ninguém ia invadir a universidade, levantou o argumento da autonomia universitária e os novos tempos que o país vivia, com a abertura. A coisa esquentou e a conversa terminou em gritos e palavrões.
Carros suspeitos seguiam o carro oficial do reitor da UFMG para todo lado, e este tentava negociar com o governador de Minas, Aureliano Chaves, para que a PMMG não cumprisse a ordem de invadir a universidade.


A essa altura, o campus da saúde, na Alfredo Balena estava cercado pela polícia. Estudantes que ainda tentavam chegar ao local eram abordados e detidos pela polícia.
Eu estava no Colégio Arnaldo, que fica a poucos quarteirões da escola de medicina e fui até lá ver o que estava acontecendo: polícia pra todo lado, inclusive "à paisana". Todo "individuo suspeito" era parado, revistado e "convencido" a se retirar do local. Mesmo com meu uniforme do colégio, de aluno do "científico" (o Ensino Médio da época), recebi alguns olhares inquisidores e resolvi me mandar dali rapidinho e ir pra casa, uma vez que lá também poderiam precisar de mim.
As negociações entre o governador e o reitor continuavam. E os 400 alunos da UFMG permaneciam no DA. O reitor foi até o DA conversar também com os estudantes, junto com o diretor da unidade. Garantiu a eles que faria o possível para que aquilo tudo terminasse da melhor forma possível.


Finalmente, noite e madrugada adentro, o reitor e o governador entraram num acordo, e o general Bandeira teve que engolir a situação: a polícia militar não invadiria o campus de saúde, mas faria um cordão de isolamento do DA até a saída da universidade, na Alfredo Balena. A UFMG enviaria vários ônibus até o campus de saúde onde os estudantes embarcariam. Dali, seriam levados para o parque de exposições da Gameleira, onde seriam fichados pela polícia e em seguida liberados, Ninguém seria preso e não haveria confronto entre a polícia e os estudantes: este foi o máximo conseguido nas negociações, entre o reitor e o governador e este com o general Bandeira, já que o general não conversava mais com o reitor depois dos impropérios e ameaças trocadas.
Assim foi feito: os estudantes entraram nos ônibus da UFMG e foram levados para a Gameleira. Ali, assistidos por funcionários da UFMG que levavam comida e refrigerantes, além de acompanhar os estudantes na entrevista com a polícia e depois saiam com eles até a saída do parque da Gameleira até ter a certeza de que todos os estudantes seriam liberdades. Longas e longas horas de trabalho, vigília e agonia para os estudantes, para os funcionários da UFMG e para as famílias. Todas as famílias: dos estudantes e a minha família também.
Meu pai, Eduardo Osório Cisalpino, então reitor da UFMG, passou dias longe de casa, ou aparecendo por poucos momentos. Ou aparecia o Hélio, motorista da reitoria, para pegar roupas ou algum documento. Mas me lembro, claramente, da "conversa" com o general. Depois do que ouvi, pensei que ele ia ser preso ou algo ainda pior. Me lembro de ver o carro, sem placas, com quatro homens dentro, parado na esquina de casa, aguardando que o carro da reitoria saísse com meu pai.


Tempos difíceis. Mas também tempos em que o orgulho que tenho de meu pai, crescia além do que eu jamais imaginara. Hoje, quando vejo as homenagens que ele recebe na UFMG, e a forma como é tratado pelos mais antigos da universidade, percebo que essa memória ainda está viva por lá.
Beijo, meu pai.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

O MAIS NOVO MIMIMI MIDIÁTICO: ESCOLA SEM PARTIDO







Estamos novamente no olho da muvuquinha: as proterozoicas "esquerda" e "direita" brasileiras estão por aí nos brindando com suas tolices nas ditas "redes sociais". 
É um espetáculo: grupelhos como o "Levante Popular da Juventude", fósseis que andam por aí divulgando videozinhos apoiando a feroz ditadura Maduro na Venezuela, ( sim, Venezuela, aquele exemplo de país), se julgam bons o bastante para dizer o que é bom ou ruim para a educação brasileira, essa coisa brilhante que ocupa posições honrosamente à frente de Botsuana e da Costa do Marfim. Ao mesmo tempo, dinossauros - nada mais apropriado para essa discussão que a imagem de um dinossauro, nos apresentam ridículas reflexões, comparando escolas com bancadas no Congresso Nacional, como se fossem coisas absolutamente semelhantes. Bom, talvez no Brasil.
Do outro lado, brotam fotos de livros "didáticos" do MEC, óbvios, infantis, antiquados e mal redigidos livros didáticos, como a própria prática que os cerca. E declarações comoventes de total isenção, como se em algum momento fôssemos acreditar que existe qualquer possibilidade de uma prática pedagógica "isenta", sem "partido" - claro, em nome da pátria (seja lá o que se esconde sob esse conceito nebuloso e volátil).
Ambos disputam a primazia de continuar ou de recomeçar a manipular e utilizar a sala de aula para seus delírios de "um mundo melhor", dando vazão a seus egos gigantes, capazes de afirmar, tranquilamente, o que é melhor para os outros e para toda a humanidade. Beira a santidade a glória da tais profetas, não é? E nenhum deles parece se preocupar com o que deveria: como vamos fazer das escolas brasileiras instituições minimamente eficientes para sua finalidade primeira e primária: formar gente que saiba ler e escrever.
Segundo o próprio MEC, cerca de 20% dos alunos do ensino superior no Brasil são analfabetos funcionais. Professores e universidades buscam meios de melhorar a qualidade do alunado que lhes chega, para que possam, ao menos, acompanhar os cursos. A UFMG, por exemplo, já fala em retomar os ciclos básicos. Outras universidades fazem cursinhos paralelos de interpretação de textos e de matemática básica.
Mas, os donos do futuro, as vanguardas do proletariado e os defensores da tradição e família, preferem disputar a massa falida, alheios à tragédia de gerações sucessivas. como hienas famintas. Pouco importa roubar do país gerações mais bem preparadas, desde que sejam os papagaios que um ou outro deseja.
A escola deveria ser como um centro gastronômica de ideias, onde se oferece de tudo, com qualidade, frescor e honestidade, e não o ninho formador dos robôs de projetos alheios.
Mas o que vemos é desonestidade, como sempre: desonestidade de quem faz o discurso da isenção, e desonestidade de quem faz o discurso da"escola crítica", quando na verdade são incapazes de criticar a si mesmos e rever suas posições anacrônicas e fracassadas, que só produziram violência e pobreza.
A escola deveria ser um instrumento dos e para os alunos, onde eles decidiriam livremente sobre o caminho que, cada um, quer seguir, sabendo exatamente os motivos pelas quais quer seguir, com lucidez e profundidade, com o professor assumindo o papel de quem lhes abre todas as estradas possíveis, e não o saco de gatos onde a desonestidade intelectual impera, o palco de donos da verdade que ditam o caminho.
Há pouca esperança, seja quem "vença" esse debate natimorto, onde os alunos, onde a escola como instituição, definitivamente, são e serão os grandes derrotados.

domingo, 8 de maio de 2016

AS AVENTURAS DE MURA NO PAÍS DA DITADURA. EPISÓDIO 4: O CHOQUE DA ABERTURA

As Aventuras de Mura no País da Ditadura


Episódio 4 - O Choque da “Abertura”





O ano de 1977 foi um ano difícil. O presidente-general era Ernesto Geisel. Geisel era um militar muito conhecido na vida política do país. Quando Tenente, Geisel participou da “Revolução de Trinta”, ajudando Getúlio Vargas e a Aliança Liberal a deporem o presidente Washington Luís. Nesse mesmo período, trabalhou com Tenente Juarez Távora, o “vice-rei do norte”, durante a “revolução”, e, também sob o comando de Juarez Távora, ajudou a combater as forças da Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo.
Depois, já como Major, Geisel foi o oficial comandante do destacamento responsável por aguardar a saída do presidente Vargas do Palácio do Catete, em 1945. Em resumo: ajudou a colocar e tirar Vargas do poder entre 1930 e 1945.
Nos anos 50, Geisel aproximou-se  do grupo conhecido como “Sorbonne”, da Escola Superior de Guerra, um dos grupos responsáveis pela preparação do golpe de 64, junto com organizações da sociedade civil. Geisel é o melhor exemplo da importante máxima da política brasileira: “Os tenentes de 30 são os generais de 64”.
Geisel assumiu o poder no momento em que o modelo multinacional-associado, implementado pelos governos a partir de 64, entrava em colapso, depois de alguns anos de “Milagre Econômico”. A rápida deterioração da economia brasileira, devido, entre outros fatores, à Crise do Petróleo desencadeada pela Guerra do Yom Kippur, aumentava de forma significativa a oposição ao governo.
Geisel anunciou que iria iniciar a “Abertura Política” cujo objetivo final seria devolver o poder aos civis e restabelecer as normalidades democráticas. Mas, anunciou também que essa abertura seria “Lenta, Gradual e Segura” - ou seja: sob controle do governo e voltada para os objetivos que o governo considerava aceitáveis.
A resposta da população vinha sob a forma de crescimento exponencial da oposição, ou melhor, da única oposição permitida na época: o MDB. A maioria da população, especialmente no Sul e no Sudeste, despejava votos - os votos possíveis, no MDB. No Norte e no Nordeste, onde as carências eram maiores com relação a recursos do governo, a ARENA ainda obtinha algumas vitórias.
Mesmo no Sul e no Sudeste, muita gente já não esperava muita coisa nem mesmo do MDB e o “voto de protesto”, branco ou nulo, fazia lembrar a eleição do  Rinoceronte Cacareco, em São Paulo, em 1959.
O anúncio da dita “Abertura”, mesmo que “Lenta e Gradual”, levou também a uma reação contrária dos setores que ainda apoiavam o governo. A morte de pessoas, como o jornalista Wladimir Herzog, da Veja, dois anos antes, os ataques a bancas de revistas que vendiam jornais e revistas consideradas “subversivas”, como o Pasquim, deixavam Geisel em situação delicada, já que enfrentava oposição à “direita” - incluindo uma tentativa de golpe contra ele articulada pelo Ministro Sylvio Frota, do exército,  e à “esquerda”.
Sentindo sua “Abertura Lenta, Gradual e Segura” ameaçada, Geisel decidiu tomar medidas para assegurar o controle do governo sobre a situação. Primeiro, em 1976, veio a lei Falcão, a “lei da mordaça”, que proibia debates e discursos políticos na televisão e no rádio, especialmente durante o Horário Eleitoral. Candidatos podiam dizer apenas dados pessoais, Me lembro, por exemplo, de uma candidata a vereadora em Belo Horizonte, que aparecia no horário eleitoral dizendo o nome, número, cargo a que se candidatava e a frase “Mãe de Cinco Filhos” .
No ano seguinte, em 1977, as coisas ainda andavam agitadas, e Geisel decidiu usar o AI-5. Felizmente, essa seria a última vez na história do Brasil ( e espero que continue sendo ad eternum) que um ato de exceção seria usado contra a sociedade civil.
Geisel baixou o “Pacote de Abril”, cujo principal objetivo era manter o controle do governo sobre o Congresso Nacional. Como a oposição crescia, o governo temia que eles conseguissem fazer reformas constitucionais, para as quais eram necessários dois terços da Câmara e do Senado.
Naquele dia Brasília amanheceu cercada por tanques do Setor Militar Urbano. O Congresso Nacional foi fechado para “Reformas Políticas” que iriam incluir a indicação de um terço dos senadores pelo governo, os chamados senadores “biônicos” (nome debochado dado pela população aos “superpoderes” dos senadores que não precisariam mais ser eleitos - Paulo Maluf foi um deles. José Sarney também. Era uma referência a uma série americana de muito sucesso na TV: “O Homem de Seis Milhões de Dólares”, na qual o personagem principal tinha membros bioeletrônicos que lhe davam força sobre-humana). O objetivo da reforma, como já disse, era evitar que a oposição controlasse o Congresso Nacional.
Em Belo Horizonte, movimentos estudantis decidiram fazer um protesto público. Não preciso dizer que isso era ilegal, não é? Naquele tempo, "conversa de mais de dois era comício". Os “manifestantes” podiam ser presos e ter suas matrículas universitárias canceladas, de acordo com a lei 477.
Recebemos informação, no meu colégio, que o protesto aconteceria na Av. Álvares Cabral, em frente à escola de direito da UFMG.
E fomos pra lá. Fui, me borrando de medo. A coisa não era brincadeira naquela época. Lembrem-se das leis em vigor. Mas, fui.
Chegamos lá um pouco cedo, e o pessoal ainda estava se juntando. Espalhados pela Álvares Cabral, pelo canteiro central da avenida, na calçada em frente à escola de direito. Chegou um destacamento da tropa de choque. Os “homi” se posicionaram entre o canteiro e a calçada da escola, dividindo o pessoal. Sob protestos e palavras de ordem, colocaram um cordão de isolamento entre a avenida e a escola. E o pessoal gritando e cantando e lançando palavras de ordem contra Geisel e o “Pacote de Abril”. E a coisa foi engrossando. E eu numa situação difícil, espremido no cordão de isolamento.
Daí chegou a cavalaria. Vou dizer uma coisa pra vocês: estar espremido entre uma multidão, um cordão de isolamento e soldados a cavalo, portando enormes cacetes de madeira e cacetes elétricos- sim, eles usavam um cacete que dava choques, não é exatamente a melhor posição na vida de uma criatura.
E a coisa foi engrossando. O pessoal empurrava lá de trás e a gente de cara com os cavalos, os cacetes e os escudos do choque. A gente segura no cordão e empurrava de volta pra trás. A polícia estava muito calma pro meu gosto. Simplesmente assistiam (você pode achar isso comum, hoje, na época não era nem um pouco comum). Provavelmente, achavam que estava sob controle, já que os cavalos intimidaram muita gente, que começou a ir embora.
Mas, tem sempre o “de repente”, não é? Pois então: de repente, veio uma onda mais forte lá de trás e muitos dos que estavam espremidos no cordão foram “cuspidos” em direção aos policiais. E o pau quebrou.
O choque baixou o cacete nos que tentavam correr pela Álvares Cabral abaixo. Os que estavam a cavalo, jogavam os cavalos contra os caras e o cacete gigante comia. Eu achei que tentar correr paralelamente aos policiais era pior, e o melhor era tentar entrar multidão adentro, empurrando o povo que também tentava sair dali.
Daí, dei as costas para os policiais e ajudei os caras e abrir caminho no meio da galera. E foi aí que me pegaram.
Tomei um choque do maldito cacete elétrico bem no meio das costas. A coisa ardeu horrores, Parecia que alguém tinha me encostado um cigarro aceso nas costas. Empurrei com mais força, vi um espaço  e me enfiei nele. Acabei saindo na esquina da rua da Bahia, com aquele negócio ainda doendo muito. Continuei correndo. Desci a rua lateral até a rua Goiás, passei ainda correndo pela Boa Viagem e continuei correndo até a Afonso Pena, em frente ao Palácio da Artes.
Entrei no Parque Municipal, pela portaria lá de cima, em frente à Faculdade de Ciências Médicas. Ali, estava tudo tranquilo. Então, tirei a camisa, evitando encostar no que eu imaginava que era uma ferida, já que ainda ardia muito. Olhei a camisa: ela estava com uma marca de queimado, entre as omoplatas. E furada, no lugar. Fiquei indignado: eu adorava aquela camisa.
Peguei o ônibus, fui para casa. Passei uma pomada contra queimaduras no lugar e sumi com a camisa, para que minha mãe não perguntasse como é que eu a tinha estragado.
Eu me perguntava se o Congresso Nacional valia aquela queimadura. Anos depois, quando o Congresso votou a eleição de Tancredo o que significou o fim do Regime Militar, pensei que sim, que valia a pena: ruim com o Congresso, pior sem ele. Qualquer Congresso Nacional é sempre muito melhor que nenhum Congresso Nacional - a outra opção é algum “Salvador da Pátria” governando sozinho.
Mas, o ano ainda não tinha terminado. Estávamos em Abril, e viveríamos coisa muito pior, dois meses depois.

domingo, 1 de maio de 2016

AVENTURAS DE MURA NO PAÍS DA DITADURA - EPISÓDIO 3 - "O LIVRO"

As Aventuras de Mura no País da Ditadura


Episódio 03: O Livro



Quando cheguei à terceira série do ginasial, algumas coisas estavam mudadas: o colégio agora era “misto”, meninos e meninas. E o ginasial não era mais ginasial: uma reforma do ensino mudara as nomenclaturas e subdivisões do ensino no Brasil. O primário e o ginasial agora faziam parte de um segmento chamado Primeiro Grau - com 8 séries, e o Científico agora era o Segundo Grau - com três séries.
Eu era aluno, agora, da sétima série do primeiro grau, e não mais da terceira série do ginásio. Sétima série...me senti idoso…Idoso mas em companhia das meninas: estava tudo bem, oras.
Eu, nessa altura, me achava um sujeito vivido e mais por dentro das coisas do mundo. E do Brasil. Aprendia a ler nas entrelinhas das “canções de protesto”, mas me sentia mais próximo da estética do Tropicalismo, de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e começava a adotar algumas daquelas ideias, valores e modo de vestir. Começava a entrar na turma dos “pode crer”, dos “bichos grilos”, meio metido a hippie.
E me espantei quando descobri, tardiamente, as críticas da dita “esquerda” a Caetano Veloso. Muitos dos mais velhos com quem eu andava ou conhecia, criticavam Caetano e o Tropicalismo, dizendo que Caetano era um “alienado”, não falava somente de política, não fazia somente “música engajada”, era amigo de artistas acusados de serem “de direita” e “a serviço da ditadura”, como Roberto Carlos e Wilson Simonal. E, supremo pecado: usava instrumentos eletrônicos em seu trabalho e gravara um disco em inglês, enquanto esteve em Londres - um vendido ao imperialismo ianque. Bom, eram tempos curiosos, não é? Tinha gente, por exemplo, que achava que não beber Coca-Cola, chamada de “A Água Negra do Imperialismo” era uma atitude política importante. Mais curioso ainda é que Roberto Carlos foi um dos poucos a visitar Caetano em Londres abertamente. E gravou uma música em homenagem a Caetano, que passara por um período de depressão por estar longe do Brasil, no início dos anos 70. A música fez um enorme sucesso e pouca gente sabia que era pra Caetano. Chamava-se “Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos” (Roberto Carlos/Erasmo Carlos).
Na sétima série comecei a me aproximar do Grêmio Estudantil. Alguns colegas de turma tinha contatos por lá e me levaram junto. Pessoal do grêmio era arredio e desconfiado. Não era uma coisa muito segura andar às voltas com grêmios estudantis. Eram a porta de entrada para o Movimento Estudantil, coisa proscrita pelo AI-5. A maioria deles já havia desaparecido, mas o grêmio do meu colégio ainda resistia. Sua face mais visível era o entretenimento: os membros do grêmio gozavam de um espaço só seu no colégio, com direito a mesa de pingue-pongue, Totó e música.
Mas ainda havia uma atividade “subterrânea”. O pessoal do grêmio era obrigado a frequentar a missa de domingo na capela do colégio. Isso era condição inegociável. O que parecia uma forma de controlar o grêmio, foi manobrada por alguns membros para maquiar sua “atividade política”: descobri que os membros do grêmio se encontravam com estudantes da UFMG, especialmente os alunos do Diretório Acadêmico da  escola de medicina durante as missas. E ali, protegidos pela inofensiva atividade religiosa, ficavam sabendo do que andava acontecendo no movimento estudantil, que era clandestino a essa altura. A Lei 477, de 1969, previa punição a professores, funcionários e estudantes que se envolvessem com “subversão”. Professores podiam ser demitidos e não podiam trabalhar em outras instituições de ensino por até cinco anos. Estudantes podiam perder sua matrícula e ficar sem estudar por até três anos. Portanto, não era brincadeira o negócio. Era preciso muito cuidado.
Passei a frequentar as missas na capela do colégio e a andar com alguns alunos tidos como “politizados” na Oitava série.
Um desses amigos, era o Hugo. Hugo era um sujeito muito engraçado e muito inteligente. O pai dele era deputado federal pela ARENA, partido do governo, e ele era um crítico feroz da atividade política do pai. Dizia sempre que o pai era “um coronel, um latifundiário que cooperava com o sistema” (usar a expressão “o sistema” para resumir “tudo que aí está” era comum e aparentemente muito politizado, na época)
Hugo me convidou para abrir uma “célula” do Partido Comunista na cidade natal dele, no noroeste de Minas. Achei aquilo muito revolucionário. Eu nem sabia muito bem...na verdade sabia muito pouco o que era comunismo. Sabia principalmente que quem era a favor da ditadura era contra o comunismo. Então devia ser uma coisa boa, já que eles eram contra. Alguns diziam que os que apoiavam a ditadura mentiam sobre Cuba, por exemplo, que era comunista. Cuba era uma ilha do Caribe onde a revolução comandada por Fidel Castro e Che Guevara, havia transformado o país, até então escravo dos EUA, numa sociedade livre e igualitária, onde não havia mais pobreza.
Claro: achei aquilo o máximo. O negócio então é que queriam nos manter longe de Cuba para não sermos livres e iguais, e submetidos à exploração dos EUA. Estava explicado, por exemplo, por que é que no meu passaporte tinha um carimbo: “NÃO É VÁLIDO PARA CUBA”.
Numa de nossas conversas, Hugo adotou um ar muito misterioso...Olhou para todos os lados, pra ver se não estávamos sendo observados e me disse: “Toma pra você. Leia e não deixe ninguém ver esse livro. Aqui aprenderemos como lutar contra a ditadura”. Peguei o livro. Era pequeno e xerocado. Enfiei aquilo na pasta e só o abri quando estava em casa, sozinho no meu quarto. O livro era “Guerra de Guerrilha”, de Che Guevara.
Minha ingenuidade era tão grande que eu andava por aí com o tal livro, dentro da pasta.
Até o dia em que estávamos voltando da casa de um amigo, no Sion. Era tarde da noite, para aquela época. E, ao virarmos uma esquina, vimos uma movimentação. Já era tarde para voltar. Correr não era opção: podia ser muito pior. Continuamos caminhando até o que era uma barreira policial. Estavam parando, revistando e identificando as pessoas.  Fomos parados por dois policiais, fortemente armados, com escopetas e metralhadoras. Eu estava apavorado. Lembrei do livro dentro da pasta.
A melhor estratégia, nessas horas, é fazer cara de inocente. E não deixar de olhar para os policiais com ar absolutamente normal: nem medo, nem confiança demais - as duas coisas são “suspeitas”. Pediram documentos. Pensei na carteira de estudante que estava na pasta. Melhor não mexer na pasta e nem apresentar um documento da “UBES”. A outra opção era a carteira de identidade, estava no bolso de trás da calça, dentro da carteira.
Coloquei, lentamente a pasta entre as pernas, levei cuidadosamente a mão até o bolso de trás, e também cuidadosamente tirei a carteira e a abri, já na frente do policial. Entreguei. Hugo fez a mesma coisa. Perguntou de onde vínhamos e para onde íamos. E nós dissemos, sem titubear e sem gaguejar. Os soldados olharam os documentos, olharam para aqueles dois garotos ali parados...E nos liberaram: “Vai, vai, vai”!
E saímos de lá. E eu com as pernas bambas e a boca seca. Se achassem aquele livro...não sei não.
Anos mais tarde, eu me lembrava daquele episódio e, felizmente, podia rir muito do garoto ingênuo. Ingênuo de andar com uma peça “subversiva” tranquilamente dentro da pasta, no Brasil do AI-5. Ingênuo por um dia ter acreditado que um regime violento, totalitário, que oprime a mantem o próprio povo como refém, representado por um sujeito tido como um “libertador”, mas que nunca titubeou em fuzilar friamente seus inimigos, não só em Cuba mas em outros países da África e da América Latina, que odiava homossexuais e colecionava frases racistas, preconceituosas e tirânicas. Comecei a conhecer quem de fato era Guevara ao ter acesso, alguns anos depois, a um pequeno filme dele em discurso na ONU, nos anos 60. O lado bom da história é que aprendi que não era aquilo que eu queria para o meu país: nem a ditadura da “direita”, nem a ditadura da “esquerda”. Era preciso buscar outros caminhos.
E assim, ia eu vivendo, entre o ufanismo dos militares e suas grandes obras do “Brasil que vai pra frente”, e os mitos de uma esquerda igualmente totalitária, em sua inspiração soviética.
Escrevi um poema, há mais de 30 anos, sobre como eu me sentia nesse período. Segue aí abaixo pra vocês (perdoem o poema adolescente, mas é o registro de uma época de minha vida)


“Tinha meganha demais na minha juventude.
Tinha Era de Aquário e Olimpíadas do Exército,
 Nas minhas jovens atitudes


 Tinha querer
  Ir pra frente
  Ser corrente
  Milhões de indigentes
  
  Tinha Che Guevara
  e Ponte Rio-Niterói
  Ilusões e cimento
  Legiões de Ataúdes
  Na minha nuvem juventude


  E a garota de bata rosa
  No show do tarancón
  Não sabia que Cuba era uma ilha.”


 (Obs: Meganha = Militar. Cuidado, é um tratamento ofensivo, hehe)

domingo, 24 de abril de 2016

AS AVENTURAS DE MURA NO PAÍS DA DITADURA EPISÓDIO 2: O DOPS E A EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA

As Aventuras de Mura no País da Ditadura


Episódio 2: O DOPS e a aula de Educação Moral e Cívica.





Um dia, eu tive que mudar de escola. A escola em que eu estudava ia apenas até a 4°série. E eu estava entrando no Ginasial, que corresponde hoje ao Fundamental Maior, a partir da 6° série.
Muitos estudantes, dependendo de sua situação de aprendizagem, faziam um ano de “Admissão”, entre a 4 série de primário e o 1 série do ginasial. Para saber se isso seria necessário, a gente fazia uma prova. Daí, minha mãe me levou para fazer a tal prova no novo colégio que haviam escolhido pra mim.
Fui lá. Fiz a prova. E acho que devo ter ido bem o suficiente para não precisar fazer o “Admissão”. Não me lembro de notas e essas coisas. Só me lembro de começar, com uniforme novo, o primeiro ano do Ginásio. “Puxa vida, estou no ginásio. Praticamente um adulto” - bom, vocês conhecem essa pretensão de maturidade que acompanha nossos progressos escolares, não é? Olhava para os meninos do primário e pensava: “pirralhos”...
Mudar de colégio é quase sempre complicado, mas, pra mim, foi ainda mais. O colégio anterior era pequeno, quase familiar, boa parte dos pais se conheciam. A quarta série, por exemplo, tinha apenas duas turmas, e com no máximo 30 alunos em sala.
O novo colégio era imenso, um prédio enorme com quatro andares e ocupava um quarteirão inteiro, com frente para a av. Bernardo Monteiro. Ainda existem em Belo Horizonte - tanto o prédio quanto o colégio. E eram umas quatro turmas de cada série, do Ginásio e do Científico (atual Ensino Médio).
Quanto vi aqueles galalaus do Científico entrando no colégio, percebi que eu voltara a ser “pirralho” muito rapidamente. A alegria de bancar o vivido e experiente, tinha sido fugaz.
Um detalhe importante: o colégio era só para homens. A maioria dos colégios em Belo Horizonte já tinha abandonado a prática de receberem somente meninos ou somente meninas e já eram mistos. Mas no colégio em que eu entrava, as turmas  “mistas” estavam previstas apenas para o ano seguinte.
Procurei a minha sala, no primeiro andar. Turma B. Entrei, tentando evitar muitos contatos com os novos colegas - sou tímido, sabe como é. Sentei-me mais ou menos no meio da sala. As carteiras eram grande e pesadas, ainda com aquelas tampas que levantavam. Tinha até lugar para colocar o tinteiro, que ninguém usava mais.
Toca a sirene (ou sinal, se preferir) e em pouco tempo tempo entra o primeiro professor: era o professor Pacheco, de matemática. Todo mundo de pé (quando o professor entrava, vc tinha que se levantar, em sinal de respeito). Ele mandou que sentássemos, organizou-se, fez a “chamada” e começou a aula
Professor Pacheco era um homem de seus 40 anos, magro, estatura mediana, um imenso bigode e uma antena de carro nas mãos, fazendo as vezes de indicador para o que escrevia no quadro. Começou a aula com uma frase que já o havia tornado célebre: “A matemática é a rainha das matérias”!
Pouco me importei com a aula. Primeiro, era matemática - chato pra caramba. Segundo, era preciso fazer um reconhecimento ampliado. Passei o tempo sacando os colegas, olhando o pátio do colégio pela enorme e neoclássica janela: lá estava a famosa piscina suspensa do colégio, lugar que eu pretendia frequentar muito. Eu gostava muito de nadar, nadava muito bem e em pouco tempo pretendia estar na equipe de natação do colégio, como já estava também na equipe de natação do Olímpico, clube que eu frequentava.
Na hora do intervalo, descemos para o pátio interno do colégio: cantina, 3 quadras de futebol de salão e um campo de futebol - de terra. Não tinha o tamanho oficial, mas era o maior campo no qual eu já tinha pisado. De repente, vi um pessoal entrando por uma grande porta, no que parecia um porão, do outro lado das quadras. A curiosidade me levou até lá: “Grêmio Estudantil” - estava escrito na placa lateral.
Mas o grêmio estudantil, onde havia várias mesas de jogos, como pingue-pongue, Totó e outros, não era acessível a todos. Só para os membros. “Nota mental: virar membro do Grêmio Estudantil”
Não seria tão simples, mas foi importante para ampliar alguns dos meus horizontes, como veremos mais à frente.
Desse primeiro ano do Ginásio, pouca coisa de importante aconteceu na minha vida. Acho que passei a maior parte do tempo no esforço de me adaptar àquele novo universo superpovoado e tão diferente do meu primário.
Fiz alguns amigos, tanto do primeiro ano quanto do segundo e terceiro anos, graças ao futebol e à natação. Conviver com os “mais velhos” e experientes é muito importante para um “pirralho” do primeiro ano: você descobre coisas fundamentais para uma vida mais feliz e segura naquele universo.
Por exemplo: descobri que todo mundo tinha medo do porteiro do colégio. Não do “disciplinário”, que era considerado muito bravo e inflexível, mas justo. O medo era do porteiro.
Era um sujeito muito alto e muito forte. Cara fechada. Ficava sentado numa mesinha, quando estávamos entrando no colégio, logo cedo, e tínhamos que entregar a ele a “caderneta”, que controlava a presença. Ele abria na página do mês e carimbava “presente”, com tinta azul. Se você não fosse à aula, no dia seguinte recebia um “ausente” em vermelho, perdia frequência - que contava para aprovação, e tinha que se explicar com seus pais, se matasse aula.
Pois os mais velhos diziam que esse sujeito, o porteiro, era “agente do DOPS” disfarçado. Então eu fui procurar saber o que era o DOPS.
O DOPS era o Departamento de Ordem Pública e Social, criado pelos governos militares, depois do golpe de 1964. Era o órgão responsável por estabelecer uma vigilância política sobre as pessoas. Quem era considerado “subversivo” ou suspeito de ser “subversivo”, ia parar no DOPS, se tivesse sorte. Alguns que não tinham “sorte” por estarem muito comprometidos com a “subversão”, despareciam. Os familiares não conseguiam encontrá-los, ninguém dizia nada sobre eles. Não se sabia se estavam presos ou não. Era uma busca dolorosa e perigosa. Muita gente tinha medo até de procurar saber onde estavam os amigos e parentes. Muitas pessoas eram exaustivamente interrogadas simplesmente por conhecerem alguém acusado de “subversão”. Estávamos sob o AI-5, pessoas acusadas de “subversão” podiam ser presas sem necessidade de mandado de prisão, sem processo formal e sem direito a .responder o processo em liberdade.
Os mais velhos, portanto diziam que o tal porteiro era “do DOPS” e isso bastava para manter distância e evitar até mesmo conversar com ele. Pra piorar, o DOPS ficava muito perto do colégio, a três ou quatro quadras, na esquina de Bernardo Monteiro com Afonso Pena. E já que desgraça pouca é bobagem, todos os dias eu tinha que passar em frente ao DOPS para pegar o ônibus de volta pra casa, na Afonso Pena.
Depois que me disseram para evitar aquele lugar, passei a descer a avenida Brasil, e não mais a Bernardo Monteiro, pra pegar o ônibus. Sabe como é: ninguém sabia exatamente o que era ser “subversivo”. Vai que eu era, né? melhor evitar dar mole pro azar.
Naquele primeiro ano, conheci também duas outras coisas interessantes. Uma, foi o Professor Elmo, de inglês - pessoa divertidíssima, que pouco ensinava de inglês, mas que criava passarinhos e adorava falar sobre eles. Passava várias aulas imitando o som de passarinhos pra nós. E dando cocadas nos mais rebeldes - sim, professores podiam dar cocadas nos alunos quando eu estava no primeiro ano do ginásio. A outra, foram as aulas de Educação Moral e Cívica. A ideia desse tipo de disciplina não era nova. Getúlio Vargas também havia tornado essa disciplina obrigatória nas escolas, durante o Estado Novo.
Nas aulas de Moral e Cívica, aprendíamos sobre como ser um bom cidadão, sobre o significado dos símbolos nacionais, como a bandeira, o hino, o brasão da República. E também sobre qual era o papel dos órgãos municipais, estaduais e federais. os alunos mais velhos diziam que nas salas havia um alto-falante pelo qual era possível a direção do colégio e os agentes do DOPS, escutarem as aulas do professor pra saber se ele não era um subversivo.
Eu aprendi que era prudente falar o menos possível na aula de Moral e Cívica. “Vivendo e aprendendo a jogar”.

terça-feira, 19 de abril de 2016

AS AVENTURAS DE MURA NO PAÍS DA DITADURA - EPISÓDIO 01

As Aventuras de Mura no País da Ditadura

Episódio 1: Não se fala em corda na casa de enforcado.

A primeira coisa que eu queria dizer é que fico muito feliz, muito feliz mesmo, que a maioria dos que vão ler isso aqui só conhece a palavra ditadura do dicionário. E espero, e lutarei, para que continue assim.
Dito isso, vamos aos fatos.
Estamos nos “Anos de Chumbo”, o general-presidente é Emílio Garrastazu Médici. O AI-5 estava em vigor a menos de um ano. Imagino que todos saibam o que foi o AI-5. Passei de criança a adolescente sob o AI-5. E a primeira coisa que se aprendi é que, em uma ditadura, não se fala sobre ela...pelo menos não impunemente.
Minha mãe tinha o hábito de ir à missa no convento dos frades capuchichos, no alto da Serra. O lugar existe ainda hoje, em Belo Horizonte, mas em uma região já totalmente urbanizada e incorporada ao cotidiano da cidade. Na época, era quase zona rural. A rua mal chegava até lá, e era cercado pela mata nativa, quase intocada, da Serra do Curral. Uma das coisas que atraia minha mãe ao convento era exatamente esse clima bucólico.
Nunca fui muito de missas. Na minha infância, eu sempre achava alguma coisa mais interessante pra fazer, num domingo pela manhã, do que ir à misssa. Entretanto, o lugar era realmente lindo e, por isso, fui algumas vezes com ela à missa. Até que de repente, as missas no Convento dos Capuchinhos, sumiram da minha vida.
Não me dei conta disso, no início, é claro. Mas, certo dia me lembrei do Convento. E fui perguntar à minha mãe se podíamos ir à missa no Convento. Ela me olhou, calmamente e disse que não havia mais missas no Convento. “Os frades não estão mais lá, se mudaram para outro lugar” disse ela. “Pra onde, mãe”?. “Não sei” e não falou mais sobre o assunto. E foi a última coisa que ouvi sobre os capuchinhos por um tempo. A memória do lugar ficou, e toda vez que eu passava por lá, me lembrava desse episódio.
Até o dia que descobri que o Convento dos Capuchinhos tinha sido esvaziado pelas forças de repressão, pelo DOPS – Departamento de Ordem Pública e Social. Alguns dos frades tinham sido presos sob acusação de subversão, por esconderem e darem fuga a procurados pela Operação Bandeirantes.
Algo semelhante aconteceu quando meus pais tiveram que mudar minha irmã mais velha de escola. Ela estudava no Colégio Helena Guerra, em Belo Horizonte, que pertencia a uma congregação de freiras (não me lembro mais qual congregação). O colégio foi fechado sob a mesma acusação: subversão. Lembro da minha irmã chorando por ter que mudar de escola. Me lembro também de ter ouvido alguém dizer que as freiras “eram comunistas” - não em casa. Nunca ouvi meu pai ou minha mãe usando a palavra “subversivo” ou “comunista” com relação a qualquer pessoa, em casa, quando eu era garoto.
Eu não sabia o que estava acontecendo, não se comentava sobre ditadura, nem em casa, nem na escola. Era perigoso demais. Numa ditadura, amiguinho, ninguém senta na sala, com os amigos no bar, ou comenta na fila do banco com um desconhecido para passar o tempo: “E essa ditadura, hein?”. “Pô, cidadão, nem me vale, nessa ditadura. Que ditadurão, cara”! - isso, amiguinho, podia dar muitos problemas...
Senão, vejamos: certo dia, fui com minha mãe ao centro da cidade. Me lembro claramente desse episódio, porque eramos só eu e ela, nessa aventura – aventura, pelo menos pra mim. O bom de ser criança é que aventuras moram em qualquer lugar, em qualquer palavra. O fato de sermos só eu e ela era muito raro: minha mãe já tinha os seis filhos, nessa época, e um deles era ainda quase um bebê. Não sei o motivo de estar em casa vadiando naquela manhã. Devia estar doente ou fingindo alguma doença. Fingir doença, como sabem, é uma arte: tem que estar doente o suficiente para não ir à aula e sadio o suficiente para não perder o dia em cima da cama. Acho que foi esse o caso.
Pegamos o trolebus (não sabe o que é trolebus? Ônibus elétrico que circula entre o centro da cidade e o alto da rua do Ouro, em Belo Horizonte. Ainda me lembro do barulhinho que fazia: “zzzzzzzzzzzzzzz” - lá ia a longa haste do teto do ônibus até os fios. Anos depois, enterraram os fios na “Operação Tatú” e acabaram com os trolebus. Parece que estão voltando, agora). Descemos na Praça Sete. O “pirulito” não estava mais lá. Tinha sido levado para a praça Diogo de Vasconcelos, também conhecida como “Praça da Savassi”, devido a uma famosa padaria que havia na esquina de Getúlio Vargas com Cristovão Colombo, que pertencia a uma família italiana (família Savassi). Anos depois, trouxeram o “pirulito” de volta.
Fomos primeiro à Galeria do Ouvidor. Eu adorava ir lá por causa da escada rolante. A escada rolante da Galeria do Ouvidor foi a primeira que vi na vida, e uma das primeiras de Belo Horizonte. E ainda atraia muita gente, o “turismo da escada rolante”. Depois fomos ao banco. Banco do Estado de Minas Gerais, o BEMGE, na agência que ficava na Afonso Pena com Carijós, na praça Sete. O prédio ainda existe, já que é prédio tombado pelo patrimônio histórico, mas não me lembro o que existe lá hoje.
Entramos na agência, e depois das recomendações de praxe – “não saia daqui. Se sair da agência te mato” e coisas semelhantes na doce relação mãe e filho, minha mãe foi ao caixa e eu fiquei por ali admirando aquele prédio lindo: imensas colunas, vitrais coloridos nas janelas, cerâmica decorada no piso...E então eu vi um cartaz: PROCURA-SE. ASSALTANTES DE BANCO.
Uau! E eu pensando que assaltante de banco era coisa só da TV e do Cinema. Fiquei ali olhando aquelas caras. Alguns homens e uma mulher. Abaixo, o telefone da polícia para o cidadão passar informações. Viajei naquele cartaz, que era mais ou menos parecido com esse aqui abaixo. 


Minha mãe me viu ali, e não conseguiu esconder o ar de espanto e preocupação. Veio andando rapidinho e me tirou de lá: “Para de ficar olhando isso”. E seguimos a vida.
Anos depois, vi aquele cartaz de novo, em um livro e vim a saber que eram membros da ALN e da VPR, entre eles, o ex-capitão de exército Carlos Lamarca e sua namorada. Assaltavam bancos para financiar a guerrilha, já que o acesso a recursos vindos da URSS, via Cuba, estava cada vez mais difícil para eles.
Mas, a primeira vez que vi a repressão ao vivo e a cores, com todas as sua evidências, foi por causa da escola. Tínhamos uma professora que certo dia apareceu em sala de aula com um bodoque. Em Belo Horizonte chamamos de bodoque. Há quem chame de atiradeira ou estilingue. Pra mim, é bodoque mesmo. A pobre moça não queria mostrar aquilo, mas, por acidente, ele apareceu quando ela tirou alguma coisa da bolsa. E todo mundo foi lá ver aquela coisa. Era um bodoque diferente, não era como os nossos, feitos com forquilha de goiabeira e fitas de borracha de câmara de ar de pneus (sim, nessa época, pneus tinham câmaras de ar). Era um bodoque de metal com fita de borracha hospitalar, daquelas borrachas usadas para garrote ao tirar sangue de pacientes. Muito mais poderoso. E não usava pedras: a bolsa dela estava cheia de esferas de rolamentos.
A professora contou que ia a uma manifestação estudantil e que a polícia militar havia proibido a manifestação – em tempo: manifestações de caráter político eram proibidas, de acordo com o AI-5. Todas e qualquer uma. A polícia ia com o que chamamos hoje de tropa de choque e também com a cavalaria. E eles atacavam a polícia com aqueles bodoques e esferas de rolamento. Pra você que está lendo isso e pensando no assunto, devo dizer que uma esfera dessas pode matar uma pessoa, portanto, se for fazer isso, esteja preparado pra assumir as possíveis consequências.
Acabou-se a aula e acabou-se a professora. Dias depois, soubemos que ela estava internada na enfermaria do Hospital João XIII. Alguns colegas decidiram visitá-la. Convenceram os pais, e lá foram eles. Ao chegar, diziam o nome da paciente que estavam procurando. Imediatamente eram encaminhados a dois policiais militares que, por sua vez, levavam os visitantes até uma salinha, onde estavam outros dois agentes do DOPS e um escrivão, agarrado a sua máquina de escrever. Tinham que dar o nome, endereço, e explicar os motivos pelos quais estavam querendo saber daquela pessoa.
O que aconteceu, vocês já devem imaginar: ninguém nunca mais foi procurar por ela. Não que eu saiba. E ninguém nunca mais ouviu falar dela. Não que eu saiba.

Foi assim que comecei a conhecer o que era a dita...a ditadura. E seus métodos.

sábado, 5 de dezembro de 2015

ANA MARIA

ANA MARIA



Só. Só, em casa, Ana Maria esperava. Vagava pelos corredores: o caminhar de Ana Maria deixa rastros no pó acumulado pelo assoalho de sua mesmice. O pano - muito branco, muito leve -, da camisola. E a mulher, percorrendo os vários cômodos de seu vazio.
Chovia. Ana Maria entre os clarões azuis, esperava. Correu as mãos pelo corpo: frio. Frio nos ossos e nos olhos da moça. Mas ela não se desesperava; esperava. Entretanto, os clarões azuis provocavam, por vezes, pequenos sobressaltos que deixavam escapar o medo em interjeições, desafiando-lhe a frieza do olhar.
Tomava chá com batidas do relógio na cozinha. Imensa cozinha, sob a luz das velas: a tempestade levara a energia. Os sons, chuva e relógio, a luz piscante das velas...
A cozinha transformara-se numa catedral de fórmica; e Ana Maria lembrou-se de um armário onde costumava esconder-se, quando criança. Na porta do armário havia um espelho. Ana Maria fechava-se no armário com uma lanterninha que a mãe lhe dera e ficava horas observando seu reflexo no espelho: sorria, olhava-se; emudecia, olhava-se; chorava, olhava-se; despida, olhava-se.
Ana Maria colecionava, distraidamente, migalhas do tempo sobre a mesa da cozinha, e observava seus dedos, sempre tão finos. Havia uma bruxa na infância que devorava criancinhas que tinham os dedos gordinhos.
“Houve um tempo em que os desejos eram como pele, Ana Maria”. A moça agora esforçava-se para lembrar canções; canções que ela costumava cantar no chuveiro, nos caminhos, para o vento. Canções que soube de cor. Canções de amor de tempos atrás... Há tempos atrás?
Saiu da cozinha levando um pequeno castiçal de louça, pintado à mão com motivos orientais, por uma amiga. Uma amiga... Como era seu nome? Uma amiga que adorava frases: andava com um caderninho anotando frases. Consumia, vorazmente, “Pensamentos do Dia” e “Momentos de Reflexão”, com os quais carimbava todos os acontecimentos. Uma amiga que rubricava as horas com palavras alheias e, muitas vezes, aleatórias. E era feliz.
Ana Maria foi até a janela da sala de estar. Que tinha cortinas de renda: as cortinas e a renda já tiveram uma história e um sentido em sua história. Ela entreabriu a cortina e sua esquecida história. A vidraça estava embaçada. Ela desenhou flores, bichinhos e pequenos objetos. Fazia rabiscos-apenas-rabiscos. um cheiro de grama molhada.
O jardim, além da janela, também parecia outro: outras sombras, outros mistérios, outras raízes. Não era mais o jardim onde a menina Ana Maria colhera copos-de-leite, admirada, guiando o corte da longa haste pelas orientações da mãe; sussurrantes orientações, cuidadosa operação, como se estivessem a cortar um cordão umbilical. Como se tivessem a consciência de que separavam a flor da existência da flor.
Não era mais o jardim onde a menina Ana Maria enterrara bulbos; o jardim onde enterrara um bichinho de estimação dentro de uma caixa de goiabada.
Ana Maria não era mais a menina Ana Maria. Ana Maria não era mais a mulher Ana Maria. Não era mais a mesma mulher de quando descobriu estar amando. Não era mais a mulher com os seios em cor, com os olhos chorando sabor, ansiosa, buscando agarrar-se ao orgasmo que insistia em fugir-lhe entre os dedos, sempre tão finos.
Um clarão. Azul. O jardim, a chuva, o som das gotas no vidro da janela; a cortina, a renda e Ana Maria, com o rosto entre as mãos.
Não era mais a menina que escreveu poemas, que guardou flores e embalagens de bombom entre as páginas do caderno adolescente. Não era mais a menina que aguardou, - coração fora do peito - , os passos do garoto que vinha tirá-la para dançar. A menina que registrou no diário, - perdido, distante, quase improvável diário - , o primeiro beijo
Não era mais a Ana Maria que marcou encontro, na lanchonete, com o tímido garoto dos óculos de tartaruga; que ligou para a amiga Marcinha contando todos os detalhes do encontro: os risos trocados, a amiga a perder o fôlego, aliviando as tensões e coroando com alegria a descoberta de um jeito mulher na menina Ana Maria.
Não era mais essa menina, não era mais essa mulher. Ana Maria não sabia mais quem é Ana Maria. Ana Maria que esperava.
Enroscou-se no sofá acariciando a camisola, acariciando o sofá, acariciando as coisas da sala de estar: coisas de Ana Maria que, um dia, deixou de ser.
Era querer. Ela era só querer. Queria outra vez Ana Maria nos dias que quis Ana Maria

E ele... ele haveria de chegar, como sempre chegava. Mais cedo ou mais tarde. E só, Ana Maria.